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A angústia do louva-a-deus

A angústia do louva-a-deus

IV A estufa do holandês

1. Havia, nas imediações de Almodôvar, entre a aldeia de Santa Clara-a-Nova e a Serra do Caldeirão, um imenso campo de flores a contrastar com o dourado seco da planície alentejana, que ali se rendia à imponência subtil da serra e parava.

 

Era a estufa do holandês. Nome que as gentes do sul pragmaticamente lhe aplicaram. Era uma estufa. E pertencia a um holandês. Era vulgar encontrar por aquelas regiões do fim do reino de Portugal, onde começava o domínio dos Algarves, toponímias semelhantes.

 

Estava ali desde 2003. De início, as pessoas falavam muito. Era motivo de conversas de café a estufa do holandês. E nos adros das pequenas igrejas que definiam o conceito de centro em cada uma das pequenas aldeias da região. O centro, conforme Mircea Eliade o classificava em o Mito do Eterno Retorno. Todas as terras o tinham.

 

Com o passar dos anos, a estufa do holandês para ali ficou. Como tudo para ali fica. Sem novidade, absorvido pelo poder centrípeto de um outro centro: a intemporalidade da letargia da paisagem alentejana. Os tempos parados na asfixia do tempo. Asfixiados na sua própria rigidez. Nunca chegam a morrer. Vivem numa agonia perpétua. A agonia dos deuses.

 

O holandês aparecia em Almodôvar apenas uma ou duas vezes a cada duas semanas. Para fazer compras banais, ir aos correios ou ao banco. Era simpático, confirmavam os velhos sentados nos bancos dos jardins, enquanto aguardavam a morte. «Um dia, morro!» murmurava amiúde o tio Palma, antigo comandante do posto da guarda. Com o 25 de Abril, perdera a autoridade. Negava todas as acusações de abusos de poder ou de violência sobre o povo. «Nunca quis saber de política.» E o povo perdoou-lhe as bastonadas. E ele só dizia um dia, morro!

 

Enquanto não morria, para o velho GNR, o holandês tinha qualquer coisa de suspeito. Os olhos sagazes do tio Palma, eternamente semi-cerrados pela ofuscação do sol, captavam-lhe os gestos, os sorrisos, as palavras doces proferidas num broken portuguese a que toda a gente achava graça.

 

 

2. O holandês chamava-se Rutger Van Marwijk. Era homem na casa dos trinta. Muito louro. Muito alto. Muito sorridente. Muito holandês. Não perdera o sorriso, mesmo depois das notícias vindas a público sobre as actividades suspeitas que seriam praticadas por trás das casas de vidro. De plástico, na verdade.

 

Vinha tudo no Correio da Manhã. O que é que não vinha no Correio da Manhã? Mas, desta vez, não era por vir no Correio da Manhã que o caso não era sério. Num instante, espalhavam-se os «Eu não te disse?» Para toda a gente, agora, tudo estava na cara

 

E o que se passava era o seguinte: a Polícia Judiciária estava a investigar as actividades do holandês na região. Aparecera assim de rompante a interrogar toda a gente. Até o tio Palma, que ficou todo orgulhoso por mais uma vez estar ao serviço da lei e da grei.

 

As suspeitas pareciam incidir sobretudo sobre as crianças que viviam no acampamento que, ao longo da última década, vinha a crescer em redor da estufa. Havia a grande estufa, duas pequenas estufas; os laboratórios, e três enormes campos de flores a céu aberto. Entre as estufas e os campos, havia uma série de bungalows e dois pavilhões de madeira, o que vulgarmente passou a ser designado por acampamento. Já era considerável a comunidade que ali habitava. Dizia-se que era maioritariamente constituída por estrangeiros. Estranjêros!

 

O que levou ao desencadear da investigação da polícia foram as denúncias que ao longo do tempo foram sendo reportadas, sobre a existência de um crescente número de crianças. Todas lourinhas. Todas filhas do senhor Rogério, suspeitavam os nativos, recorrendo à forma de aportuguesamento do nome que alguém, não se sabe quem, usou para rebaptizar o holandês.

 

Dizia o povo, e o Correio da Manhã corroborava!, que havia para ali bruxedo. Havia quem tivesse ouvido falar de luzes durante a noite. E de batuques de tambores. Galinhas mortas e o diabo a quatro. Outros falavam numa seita. Religiões esquisitas do norte! Mas o que motivava a acção policial eram as crianças. Único elemento relevante na história. A estufa era legal, os campos também, todo o negócio das flores estava devidamente oficializado pelas autoridades portuguesas, sobretudo pela Autoridade Tributária, que dizia que sim, tudo estava regularizado, sim senhores! Apenas as crianças levantavam suspeitas.

 

Para já, as autoridades verificavam as identidades. O proprietário, Rutger Van Marwijk, afirmava solenemente que eram filhos dos seus colaboradores, cerca de quinze homens de nacionalidade holandesa e alemã, acompanhados das suas devotas esposas, que decidiram mudar para os ares temperados do sudoeste da Europa, e aceitar o apelo do governo português ao investimento estrangeiro. Willkommen! Tudo muito plausível, portanto.

 

 

3. «Foi trazida da Holanda, Augusto», respondia assim o embaixador Paes Varela à curiosidade do motorista sobre uma caveira que amparava uma fila de livros, alguns já muito antigos, na prateleira mais visível da sua casa do monte. «E é verdadeira, senhor embaixador?» «É, sim, senhor. Ofereceu-ma o Rutger, o dono da estufa, durante uma recepção que dei a potenciais investidores na Embaixada na Haia. Na Haia, Augusto. Não em Haia, como para aí propaga a gentalha. É Den Haag, caramba!» «E a quem pertencia?», perguntou ainda meio atónito o bom do Augusto, «Não lhe levantaram problemas no aeroporto, senhor embaixador?» «Veio por mala diplomática, obviamente», assegurava orgulhosa a velha raposa das Necessidades, enquanto de mãos nos bolsos contemplava o seu troféu, pressionando os lábios, como que a dar um ar solene àquela revelação. «Esta é a caveira de um grande holandês. Infelizmente, para a História, ficou apenas a memória injusta de um traidor; de um nazi. É verdade que cumpriu serviço ao lado de Anton Mussert, fundador do Nationaal-Socialistische Beweging, na 34ª Divisão de Granadeiros SS Landstorm Nederland. Mas não é verdade que Brunswichk fosse nazi. Era um flamengo orgulhoso, nacionalista, talvez. Foram tempos conturbados aqueles…», olhou de lado para Augusto apenas para confirmar a sua atenção; estava boquiaberto e não parecia estar a entender o propósito da revelação. E continuou, para se ouvir melhor: «Para o resto da Humanidade, o seu desaparecimento é um mistério. Na verdade, morreu às mãos de judeus holandeses. E ele até era descendente de judeus de Antuérpia. Que ironia! Já viu, Augusto? Você está a ser contemplado com uma tremenda honra, homem!» E deu uma tímida gargalhada, como que a dizer «está boa…».

 

O motorista sorria sem saber bem do que estava a ter conhecimento. «Conto com a sua habitual discrição, Augusto», conclui o Paes Varela, passando suavemente a mão direita pelo braço esquerdo de Augusto. Gesto muito habitual nos corredores aveludados de Alcântara. Um misto de cortesia e de código de sociedade secreta, de significado dúbio por vezes. Tudo testemunhado pela presença vigilante de Salazar, cujo busto se impunha no canto direito da secretária de mogno. Dignidade maior que a do esquecido herói flamengo, ainda assim. E, para mais, uma gentil oferta do velho amigo, embaixador Franco Nogueira.

 

O fim-de-semana na casa do monte alentejano, propriedade da família Varela já ia para duzentos anos, estava ainda a começar. Augusto estava oficialmente requisitado como motorista, mas aquele passeio representava também um velado prémio pela lealdade demonstrada. Ou algo mais. Nos meios diplomáticos, a animosidade, a amizade ou mesmo a simples tolerância têm manifestações semelhantes.

 

4. A dona Amélia, imortal servidora da família, chamou para jantar. Era um convívio simples, Paes Varela e Rutger. Augusto recebera honras de convidado da família. Um acólito de qualquer coisa que ainda não conseguira descortinar.

 

«O meu amigo Augusto acompanha-me há já uma montanha de tempos…há quantos anos, Augusto? Quinze? Pareciam-me mais, eheh!» O holandês sorriu, como sorriem todos os holandeses. Foram treinados para isso! Também ele não alcançava o objectivo da extensão do convite ao motorista. Os negócios eram secretos!

 

Atacaram com esforçada cortesia os enchidos e os queijos. O vinho, esse, estava soberbo, como ajuizava o emérito diplomata após um suave beijo no tinto, retinto da região. E falaram de muitas coisas absolutamente novas para Augusto. Algumas eram ininteligíveis para o imediatismo da sua mente frugal. A tantas sessões de mindefulness se entregavam as pessoas complicadas, armadas em complexas, e o bom do motorista não conhecia outra realidade que não a ensinada na meditação: consciência do agora. Animal Awerness!

 

No fim, sem que o filho da dona Conceição conseguisse perceber o que se passava, o anfitrião ergueu-se de copo estendido ao tecto e proferiu as seguintes palavras solenes: «É com enorme orgulho que dou por concluído o acolhimento de Augusto Serafim Macedo na nossa família secular, secular mas sagrada, eheh, os Cavaleiros da Caveira de Tell, soldados da glória teutónica, herdeira da Nova Ordem dos Templários, fundada por Jörg Lanz von Liebenfels, braço humilde e perseverante dos valores e dignidade do Sacro Império Romano Germânico!» Augusto estava lívido. Estava perto de Almodôvar e sabia que São Teotónio ficava perto de Odemira, já a caminho da Zambujeira do Mar. «Glória de Teotónio? Uma ordem alentejana?»

 

«Agora, um abraço ao nosso prosélito!» «Pro-quê, senhor embaixador?», reagia o visado, vermelho como um tomate do Ribatejo, com um sorriso de pânico estampado na cara, enquanto era arrastado pela mão, direito ao peito generoso do seu protector.

 

O holandês estava com dificuldade em sorrir. Manteve o ar mais sereno que a veia germânica lhe permitia e cumprimentou Augusto com um aperto de mão firme. Mas não fez Heil!

 

 

5. A reportagem sobre a estufa do holandês passava na televisão do bar. Ao balcão, com a cabeça apoiada numa mão, estava Pedro. Olhava para a televisão, mas não era ela que ele via. Via muito para além dela, até não ver absolutamente nada! Não era ainda a bebedeira. Se conseguisse ficar por ali, estava-se bem. Aquele era o momento da embriaguez de que mais gostava. Um adormecimento. Comfortably numb!, como na música dos Pink Floyd.

 

Aguardava por Patrícia, velha e boa amiga da faculdade, e amiga do tal Miguel Palma, autor de O Papagaio e o Ícone. Ele era de facto o motivo do encontro. Iriam conhecer-se dentro de momentos. Uma estupidez decidida com os copos. Estava arrependido. Mas como já estava num estado de moderada anestesia até podia ser que o momento pudesse ser giro. Um escritor. Nada famoso, com um livro de merda, no seu entender, mas ainda assim um escritor.

 

Miguel G. Palma era um homem já entrado na meia-idade. Era normalmente alto e normalmente magro. Uma presença agradável. Sorridente e aparentemente bem-disposto com a vida, coisa pouco esperada quando se espera a imagem estereotipada de uma pessoa que se dedica à escrita. «Eu não escrevo, às vezes escrevo!», esclareceu o desconhecido artista. Uma coisa que impressionava em Miguel Palma, para quem o conhecia pela primeira vez, era o trato dócil. Contrastava de alguma forma com a atitude segura da imagem. Uma segurança que se esfumava com as primeiras palavras. Transpirava dúvida. Não uma dúvida sofredora; atenezada. Na verdade, o nosso amigo parecia aceitar bem a dúvida na sua vida. A dúvida era a sua verdade. Pedro estava impressionado. O homem parecia ser muito melhor do que o seu livro. Mas talvez a moderada dose de whiskies ajudasse nesse juízo. Estava na fase do amor!

 

Passaram os três para uma mesa ao canto do bar. Ambiente mais escuro e tranquilo. More private! Pedro notou que Miguel não bebia. Curiosa a expressão não beber para designar apenas as bebidas alcoólicas. Como se ao beber estivesse sempre colada a imagem da volúpia. Como se o acto de beber, em si mesmo, não tivesse outro fim que a satisfação de prazeres pecaminosos. Quando se diz beber, seja vinho ou água, a mente recupera imagens de plena satisfação, seguidas de interjeições prolongadas de prazer. Aaah! Quando se diz beber, é escusado dizer mais: prazer ou vício. Nem adianta dizer que sem beber um homem morre.

 

De Coca-Cola na mão, o novo interlocutor de Pedro buscava o apoio de Patrícia, naquela noite visivelmente cansada; apagada. Essa era a versão que Pedro preferia. Ele não queria reconhecer uma verdade mais inconveniente para a sua alma megalómana: o seu beber tornara-se incómodo. Patrícia, ao aceitar aquele encontro, arriscava mais uma vez a sua confiança no amigo. Mais uma noite desagradável, incómoda, nojenta fosse talvez mesmo a expressão acertada, e teria de ter uma conversa séria. Como dizer-lhe que compreendia Sónia. Que também ela o deixaria se ele fosse seu namorado. Mas, por enquanto, ainda expectante, manteve-se na defesa. «O Pedro gostou muito do teu livro, Miguel!»

 

«Um livreco. Aquilo não passa de uma manta de retalhos, de textos que fui acumulando ao longo de dez anos. Entre os 20 e os 30. Ficou a porcaria que ficou. E eu, na altura, bebia. Bebia muito!», disse Miguel, olhando para o copo de whisky cheio de gelo na mão de Pedro. Pedro que de facto não gostara do livro e que tomara a iniciativa daquele encontro num ímpeto de bêbedo, achou mesmo assim o autor com demasiada falta de autoestima. «Mas ainda bem que o publicou. Veio-me parar às mãos pela Patrícia e … a verdade é que tem partes que julgo entender com muita clareza.» «Talvez porque beba. Não leve a mal, não estou a fazer qualquer crítica. Mas de facto acho credível a possibilidade de existência de uma linguagem associada à mente alcoólica. Uma linguagem que apenas alguém com uma vivência profunda do alcoolismo pode entender, uma espécie de código…»

 

Foi aí que Miguel entrou a matar. Discurso encomendado pela amiga Patrícia. O discurso de um alcoólico exemplar; um alcoólico que deu a volta por cima. Tentou no entanto o escritor colar a conversa ao tema, os livros, essa coisa da escrita! E saiu-se bem … pelo menos Pedro não acusou qualquer surpresa. «Aos trinta e três, depois de um divórcio complicado, dei entrada no Telhal. Conhece o Telhal?» Identificação imediata. «Conheço, sim. Também por lá passei», respondeu Pedro.

 

6. Miguel Palma tinha iniciado muito cedo a sua carreira etílica. Uma heroica espiral de afundamento pessoal que quase o levou à morte. Por volta dos vinte anos, já as prioridades da sua vida estavam traçadas e todas elas incluíam o álcool. Cada viagem, cada passeio, cada simples programa de fim de tarde, era meticulosamente estudado, de forma a que as provisões de bebida estivessem garantidas, isto é, acessíveis, planeamento que envolvia uma gestão permanente de dinheiro. Do que tinha e do que não tinha, mas que haveria de aparecer. Aparecia sempre. Os roteiros de viagens eram na verdade roteiros de bares. Era nos bares que a sua existência encontrava verdadeiro sentido. Era lá que o indivíduo se afirmava. Fingia em quase tudo, só não fingia no bar, palco natural da sua essência de bebedor. Bares escuros, cheios de fumo. Balcões de madeira, de preferência. Havendo tabaco, cerveja, whisky e umas horas para gastar, ninguém via o Palminha queixar-se de nada.

 

O resto da vida, os compromissos que normalmente se assumem em sociedade por uma questão de sobrevivência, ou gosto, ou, ainda, de sobrevivência disfarçada de gosto, não podia colidir com a ramboia. Os estudos foram feitos sem nunca prejudicar a grande prioridade. Primeiro, beberia e, havendo tempo, depois, até poderia estudar. E lá acabou a licenciatura. Em Relações Internacionais, muito fashion na época. E com os copos! O adolescente promissor estava esgotado!

 

«Não prometo nada. O homem não nasceu para trabalhar!», esclarecia Miguel G Palma, com um futuro muito incerto, mas ainda cheio de sonhos, e rebuscando uma tirada filosófica de Agostinho da Silva, lançada pelo mestre depois de uma vida inteira de trabalho. Daí aconteceu-lhe um emprego e um casamento. Conforme aconteceram, e por terem entrado em incompatibilidade com o percurso traçado, casamento e emprego foram às urtigas. Ainda escreveu um livro, o único, e o motivo pelo qual aquele encontro se dava agora. O Papagaio e o Ícone, título que remetia para imaginário infantil. Talvez não desapropriado. A seriedade que nos vintes quis imprimir no que escrevia era infantil; revelava uma tremenda imaturidade. As pessoas que verdadeiramente sofreram são geralmente alegres. Como se do sofrimento se avistasse a morte e, apenas depois disso, se desse valor à vida. Daí a alegria; os sorrisos bem-dispostos de quem, ao perder muito, recuperou tudo! São simples as pessoas que sofreram.

 

Desempregado, divorciado e decadente, física e moralmente, rumou à Alemanha, no ano de 2003, para trabalhar temporariamente numa fábrica. Aí, teve contacto com a realidade de Portugal. A velha questão da mala de cartão. «Só conheci Portugal quando fui para a Alemanha», costumava dizer Miguel G Palma. Lá, era repudiado pelos colegas portugueses, para quem ele era um corpo estranho à portugalidade, e desprezado pelos alemães, para quem não era mais do que um imigrante português. Quando estava sozinho, geralmente quando tinha cinco ou dez euros no bolso para se refugiar num bar, passava bem por um central european, armava-se em alemão, mas mal uma conversa se entabulava, vinha à baila a nacionalidade, e ser português não era, na Alemanha, cartão que se apresentasse. Curiosamente, sentiu-se livre em Ingelheim, ali para os lados de Frankfurt. Durante uns dias, quando não lhe eram atribuídas tarefas na fábrica, coisa comum aliás — «210, 211, 212, 213 …218…», era com esta lista diária, assim, sem nomes!, que os homens destacados para trabalhar eram anunciados por volta das sete da manhã; lista anunciada com pressa e desprezo, pelo condutor da carrinha, daqueles portugueses já corroídos pela miséria moral, explorado na Alemanha, abandonado por Portugal —, quando não lhe eram atribuídas tarefas na fábrica, dizia, era vê-lo a correr a pequena cidade junto ao Reno, montado numa bicicleta roubada por um companheiro, que solidário lha emprestara a ele, «Obrigado!». Do centro para o rio, do rio para o centro.

 

Ser tratado por um número nem o incomodava, era uma nova identidade, anónima; aceitou com leveza o batismo com o número 214. E nem a figura do patrão alemão, que parecia ter sido tirada de um policial negro escandinavo, lhe perturbava a boa-vai-ela. Um alemão de porte atlético, na casa dos cinquenta, sempre zangado e com um desprezo indisfarçável por tudo o que é meridional — «Inveja escondida dos povos abençoados pela luz solar, que olham com esperança o horizonte; o mar. Os alemães não têm esperança, parece que quando morrem é mesmo o fim.»

 

E não havia nada que se afigurasse passível de suavizar aquela indisposição parecida com um arroto de cerveja; nem a morte da mulher e dos dois filhos pequenos, às mãos de operários polacos descontentes com a situação de escravatura e dos salários em atraso. Miguel Palma ficara impressionado com a história, mas assimilara-a como quem assimila o enredo de um thriller norte-americano: com inocente excitação.

 

Regressa a Portugal passados meses, tal e qual como partira, sem nada nas mãos, culpa de intermediários lusos, sempre prontos a dizer ja, ja! aos patrões alemães e nein, nein!, aos trabalhadores a quem davam um tecto em troca da força bruta. Um tecto e mais nada! Tudo isto Miguel interiorizara como grande experiência de vida.

 

Mas era persistente o rapaz. Depois de mais uns meses de dolce fare niente, à custa dos pais, coitados que o viam a estourar com uma vida que já fora promissora, mete na cabeça que na Holanda havia de ser diferente, E foi diferente na Holanda, em 2005. Os intermediários eram turcos e, além da cerveja que o whisky era inalcançável, havia a marijuana. «For my back pains…», dizia aos amigos holandeses de balcão, fazendo caretas e apontando para as costas, ao fim dos dias de trabalho na estufa onde foi colocado, empresa de um tal de Rutger, homem novo, de sorriso fácil. «Os holandeses são mais simpáticos do que os alemães, lá isso é verdade!»

 

Nas conversas de circunstância que escutava aos colegas na carrinha de regresso da jorna, verdadeiro encontro transeuropeu, com representantes da Polónia, Grécia, Turquia e Portugal, honrado com a sua presença, dizia-se que o homem não gostava muito de estrangeiros, mas como era mão-de-obra barata, vá lá!, um sorriso não custa nada, e é como dar amendoins a macacos; os trabalhadores, entenda-se. E um dia, durante a pausa para o café, o “Rugas”, como lhe chamavam os portugueses da estufa,  confessou-lhe, com os olhos raiados de sangue, erva ou sono, que ainda haveria de se estabelecer em Portugal; que estava a estudar um projecto de negócio no Alentejo.

 

Mas sim, gostou da Holanda. Não foi mal tratado e havia diariamente dinheiro para os copos. Desde que se fosse cordial, e ele era cordial, nenhuma questão se levantava aos seus interlocutores do Mar do Norte. E, em Schiedam, ali para os lados de Roterdão, este derrotado da vida foi mais uma vez feliz. Eram litros de cerveja, marijuana para as dores, pouca que ele era mais copos, sem ninguém a quem dar satisfações mas, claro, com oito horas na estufa para pagar os vícios. Era quase o seu sonho de vida, não fosse ter de trabalhar. Seria no entanto injusto negar a sua impressionante capacidade da adaptação. Em certa medida, ele era um Zelig, essa brilhante caricatura de Woody Allen que explica muitos dos fenómenos miméticos com que nos deparamos no dia-a-dia; anseios de aprovação.

 

E agora estava ali. Sem beber havia cinco anos, com um emprego estável numa biblioteca municipal, não era o seu sonho, mas, como costumava dizer, «Não tenho ninguém a chatear-me a cabeça!». Pensando melhor, era esse o grande obstáculo entre Miguel e o resto da humanidade: chatearem-lhe a cabeça. Era daquele tipo de pessoas não me chateiem que eu também não! Mas com uma enorme contradição: não aceitava bem a indiferença. Tinha de si mesmo a ideia de alguém que merece atenção, «Ouçam-me!» Bom, e lá casou. Tinha tudo para dar certo este novo casamento. Ela também já tinha levado das boas, e só já queria ser feliz!

 

Agora, ali, ao pé de Pedro e da amiga de ambos, Miguel G Palma apresentava-se como um homem novo. Agora que já provara do fel da vida, não tinha pachorra para amarguras. Ao contrário de anos antes, quando a vida fácil o inspirou numa historieta lamechas e implausível. «É no que dá um gajo pôr-se a imaginar dores que não conhece», disse. Mas já ia longe esse jovem que, abençoado pela vida, pensou que a bênção tinha carácter vitalício e irrevogável. Agora, já nos quarenta, tivera a oportunidade de fazer diferente. Melhor, criara essa oportunidade. Fizera tudo por fazer diferente. A sua milagrosa recuperação, que se soubesse, não tivera qualquer origem divina. Foi fruto de uma inabalável vontade de mudar. Implicou uma pouco comum capacidade para mudar a forma de pensar. Porque, dizia «é o pensamento que determina a acção!» Para tudo isto funcionar, teve um meticuloso trabalho de minimização do papel das emoções na sua vida. Foram as emoções que lhe iam tirando a respiração. Assim dito, parece tudo fácil, Mas não é. Não é nada fácil mudar o pensamento e permanecer imutável a quintessência, o que nos diz quem somos!

 

 

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